quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

O inexplicável muro

O texto que reproduzo a seguir é do músico e jornalista gaúcho Arthur de Faria, originalmente publicado no portal Álbum Itaú Cultural.

Pra mim é quase uma neurose obsessiva a grande pergunta que faço, todos os dias, antes de escovar os dentes. Todas as noites, antes de tentar apagar vendo a vida das marmotas do Báltico no National Geographic. A pergunta que faço pra amigos paulistas, pernambucanos, mineiros… A pergunta que me fazem amigos uruguaios e argentinos. A pergunta que me faço com meus amigos gaúchos: “Cadê o furo?”.
Onde é que tá o buraco que impede que, um dia, se derrube o inexplicável muro de via única erguido entre o Brasil e a América Hispânica?
Via única porque a recíproca não é, nunca foi, e provavelmente jamais será, verdadeira. Argentinos e uruguaios – e provavelmente chilenos e paraguaios, mas não poderia afirmar – têm uma imensa curiosidade pela cultura e um grande carinho por seus irmãos latinos de fala portuguesa. E, baseados em sua própria fé, não cansam de manifestar o pasmo pela falta de reciprocidade. Pela ignorância brasileira com relação ao que, para eles, é até politicamente muito claro: somos uma coisa só. Uma única América. E uma verdade óbvia e ululante. Ao menos para uruguaios e argentinos. Mas – e isso é tristemente real – uma questão ignorada e/ou raramente formulada por quase todos os Brasis.
Quase porque, ainda que de forma distante do que seria o ideal (ou o lógico), o Rio Grande do Sul, tão sectário em algumas questões, já evoluiu um tanto nessa. Somos, inequivocamente, mais platinos, mais sureños que a média dos brasileiros. Afinal, tem até a velha piada – glosada por gaúchos e brasileiros de outros estados, com enfoques diferentes – de que somos argentinos que falam português. Ou quase português.
Última fronteira viva do Brasil, enquanto a corte bailava e os ciclos econômicos se sucediam, os gaúchos atrasam o desenvolvimento de suas cidades porque não paravam de ter castelhanos pra matar. O que, pela lógica, não daria em nenhuma vontade de integração. Pelo contrário. É como diz um amigo uruguaio: peleávamos tanto que nem tempo pra aprender a falar espanhol direito tivemos. Ficou esse gauchês arremedo de portunhol.
Mas o fato é que o Rio Grande sempre bailou tango, sempre fez poesia gauchesca, sempre se sentiu parte desse oceano unificador chamado pampa. E enquanto Francisco Canaro vinha a Porto Alegre gravar na Casa Electrica e usava músicos locais pra tocar seu tango sem sotaque, representantes sulistas das gravadoras nacionais mandavam cartas para o Rio de Janeiro dizendo que nem adiantava enviar discos de samba e maxixe que os gaúchos não compravam mesmo.
Esse foi sempre um sentimento latente. Menos do que uma latinidad, uma consciência de fazer parte de um sul mais espiritual até do que geográfico. E aceitar o fato de que esse era mesmo nosso destino, que o “Brasil” não tinha nada a ver com isso. Como os portugueses que, quando viajam à França, dizem: “Vamos à Europa?”.
Só que, de umas poucas décadas pra cá, a coisa foi ficando mais concreta. Graças (não só, mas bastante) a iniciativas individuais de produtores culturais de lá e de cá, às vezes dentro, às vezes fora dos governos, começamos, os gaúchos, a testar a efetiva realidade de nossa pertença a ser sul.
Um exemplo: durante uma década, Buenos Aires recebia, casa cheia e braços abertos – e também Montevidéu, em várias ocasiões –, o festival Porto Alegre em Buenos Aires (ou Porto Alegre em Montevidéu). E nós nos espantávamos de ver tantos argentinos indo nos ver não porque éramos gaúchos, mas, sim, porque éramos brasileiros. Nunca nos sentimos tão brasileiros (pare e pense na maluquice disso, amigo leitor).
Desde então, muito se construiu. Um muito que é muito pouco, mas mais que o que o resto do Brasil tem de intercâmbio com o Prata. E é isso que, cada vez mais, me pasma: nossas fronteiras culturais são falsas, e isso é óbvio. Gaúchos e argentinos. Mato-grossenses e paraguaios. Nordestinos e nortistas. As fronteiras não são linguísticas. Não são políticas. São demarcadas por proximidade de culturas. E nem assim são concretas.
Gaúchos fazem samba, gaúchos fazem zambas. Nossa pátria é a do choro, mas também é a do chamané, que, por sua vez, também pertence àquele país chamado Pantanal. O roqueiro argentino Fito Paez é um artista tão conhecido do público médio gaúcho quanto, que se yo, o Pato Fu. E, na média, os gaúchos entendem tanto de espanhol quanto de mineirês.
Pode ser o futebol? Pode. Mas convenhamos que reduzir as possibilidades de aproximação entre duas culturas a uma polêmica Pelé-Maradona é menos do que somos capazes de realizar nessa vida… (E, pra piorar, nem uruguaios nem argentinos, que levam o futebol tão a sério quanto nós, misturam essas coisas.)
Então, taí. Taí o Jorge Borges, o maior escritor gaúcho, as milongas frias do Vitor Ramil, as culturas italiana e judaica que também unificam os povos do sul. Taí o fato de que, sem jamais ter feito um show no Rio de Janeiro, a banda a que pertenço, Arthur & Seu Conjunto, toca sistematicamente em Buenos Aires, da mesma forma que Tom Zé ou Elza Soares, e nos mesmos festivais. Afinal, somos artistas brasileiros. Temos os cursos de história da MPB que eu e meu parceiro Luis Augusto Fischer ministramos todo ano por lá, para plateias atentas, sim, repletas,sim, e, mais que tudo, tremendamente informadas sobre a nossa cultura. Pense no inverso: um curso de música argentina em qualquer cidade brasileira.
E aí a gente pega um táxi pra ir pro hotel e o argentino tá ouvindo uma fita do Sivuca.
Cê já pegou um táxi brasileiro e tava tocando Sivuca?

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